COSTELÃO DE NOVILHA

COSTELÃO DE NOVILHA
A PROVA DE QUE APRENDI A ASSAR...

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Pai Bento Carvalho.

  

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PAI BENTO CARVALHO
Minha mãe escreveu suas memórias. Vida excepcional gravada em livro. Pois modestamente pretendo preencher a lacuna que ficou pois faltou a outra metade da laranja: relembrar a trajetória de meu pai. De caboclo bruto a nome de Rua em Ijuí. Esse é o esboço do que pretendo. Vou alongar essa conversa inicial à medida que me venham as lembranças e antes que o velho alemão (Alzheimer) me assalte de vez.
Há datas que mexem com a gente de maneira a recordar coisas, fatos, ensinamentos, alegrias, tristezas, vida...
Hoje quero tecer loas a um Homem, assim com H maiúsculo de posturas retas mas, como todo humano, com falhas. Essas não se faz mister contemplá-las mas sim as virtudes que sobejamente superam-nas (às falhas). Isso com certeza devem ter sido alvo de esclarecimentos no interregno entre duas vidas terrestres para seu aperfeiçoamento evolutivo. Isso é o que pretendo também com os meus erros, seguindo-lhe os passos.
Filho de um “pelo duro” que bateu os costados em Santana do Livramento e se casou com uma Uruguaia, puxando pra alemã. Não sei de fato sua origem, pela foto que vi apenas uma vez, tez clara, olhos claros, cabelos claros...
Com escaramuças fronteiriças com os castelhanos no final do século XVIII meu avô vendeu as propriedades na fronteira e adquiriu terras em Santa Maria. Conforme relatos de parentes, parece que na região do Bairro Camobi. Terras essas vendidas com a morte do meu avô.
Por sua vez, bateu os costados em Alto da União, povoado situado entre Ijuí e Cruz alta. Lá sabendo das atividades de meu avô, pai de minha mãe, e que por infortúnio estava cego, resolveu pedir para trabalhar com ele. Se enrabicharam o velho e a velha que na época eram novos e sucedeu-se que casaram. Andaram pela colônia nova aberta em Santa Rosa.
SANTA ROSA.
Na nova colônia de Santa Rosa, construiu um açude onde tirava peixes para alimentação e água para a lavourinha de arroz. Plantavam milho e feijão. Retirava moirões para cercas das sua mata com uma técnica milenar: abatia as árvores próprias, deixava-as secar na própria mata, depois de um certo tempo, tirava a polpa por fora e deixando o cerne que era separado em moirões que vendia aos vizinhos.
Não prosperaram pois primeiro aconteceram tempestades que destelharam o rancho que era coberto de tabuinhas. Depois a febre tifoide pegando filhos e o próprio. Para derrotá-lo, finalmente, no ponto de geração dos grãos, as sucessivas nuvens de gafanhoto. Os moirões não lhes davam sustento e sem os grãos, iriam passar fome. Voltaram para o Ijuhy.
IJUHY
De volta à Ijuí, iniciou a trabalhar na Prefeitura. Serviços da Hidráulica, ajudou a implantar a Usina Velha no rio Potiribú, dominou a eletricidade, ajudou a construir a rede elétrica da cidade, fazia instalações elétricas e hidráulicas residenciais. Aposentou-se na Prefa, como dizia.
FALECIMENTO
Faleceu novo. Cinquenta e nove anos. Sofrimentos físicos oriundos de trabalhos braçais, ocorrências na rede elétrica em noites de tempestades e falta de estrutura normal para a época (da abertura de buracos para os postes, seu erguimento, furação para os equipos e tensionamento dos fios) minaram sua resistência de homenzarrão que era. Alimentação rica em gordura culminou com doença cardíaca sem os recursos que hoje me mantém vivo com os mesmos problemas que os seus.
TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTOS.
Foram vários. Entre eles o gosto em assar um churrasco.
Tempos atrás, escrevi sobre o churrasco que ele gostava de fazer:
Bento Carvalho
Comecei a conviver mais com meu pai, a partir do início de entendimento da vida. Lembro de muitas coisas em tenra idade. O episódio do feijão no nariz e a foto para a carteira do IAPFESP (o INSS do Pai). Mas começar a aprender coisas, vivenciá-las, participar, só após os 10 anos. Daí até os 17 anos, fui companheiro destacado pela mãe e irmãs, para acompanhá-lo nos horários fora de escola, dia e noite. Foram muitas tardes de várias chaleiradas de chimarrão e muitos domingos em que assessorei meu pai nos churrascos domingueiros. Por que isso marcou tanto? Acredito que pelos muitos ensinamentos passados por ele que me ajudaram a encarar a vida de um modo inquisitivo, investigativo. Aos 10 anos fiz uma calçada de tijolos, ao lado de minha casa que até bem pouco tempo ainda existia, a mais de 50 anos...Olhando, vendo com olhos de ver, perguntando, inquerindo e aprendendo... Foi assim também com os churrascos.
Não lembro de quando meu pai trouxe um espeto de madeira excepcional: uma forquilha (bifurcação de um ramo) perfeita de pitangueira, de, mais ou menos, 1,20 m. Numa das tantas medições de terra que ele executava, ele achou-a e trouxe para seus trabalhos na churrasqueira improvisada no buraco do chão que recebia as cinzas do forno à lenha. Já andei por muitos matos por aí em pescarias e caminhadas, moro em um lugar cheio de pitangueiras e até hoje não achei nada parecido com o espeto dele...
Ele só fazia churrasco em fogo de lenha. E tinha as lenhas especiais para fazê-lo. Eram os nós das madeiras que ele comprava para o fogão à lenha. Normalmente as toras vinham em metro e nós dois cortávamos com o traçador(serra comprida-2 m- com cabos em ambas as extremidades). Depois, à medida que podia, eu transformava em achas de lenha. Sobravam umas maiores normalmente com nós que eu não conseguia desmanchá-las. Essas eram as utilizadas pois davam melhores brasas. Havia um ritual que começava no sábado. Ao sair para o trabalho, ele me chamava e dizia, "Nego Déi (meu apelido de piá) vai lá no açougue do alemão bem cedo e pede para ele 2,5 kg de pá de paleta, se não tiver, o mesmo peso de agulha. Diz que é para mim que ele anota e depois eu pago. Lava bem 1 litro com água e feijão (método antigo para retirar qualquer sujeira de litros de vidro) e vai lá no gringo do vinho e trás um litro de vinho tinto seco. Também deixa preparado o buraco do forno e o espeto". Ordem dada, providências tomadas. Com a pá tirava as cinzas do buraco, fazia duas paredes baixas de tijolo para servir de base, trazia as lenhas, palha e sabugo de milho para iniciar o fogo e deixava o espeto de molho no tanque (era para não queimar o mesmo quando ia para o fogo)
No Domingo auxiliava a fazer o fogo, fazia a boneca ("bonecra" no dizer dele) de palha de milho verde ou de tempero verde, fazia a salmoura com três colheres de sopa de sal fino, alho e tempero verde.
Ele espetava a carne e amarrava um arame no cabo do espeto e a outra ponta cravava na carne para não escorregar se assasse com espeto em pé. E era assim que começava assando enquanto tinha labaredas no fogo. Depois de um certo tempo, antes de colocar o outro lado para assar, salpicava o assado com a boneca e a salmoura. Acompanhava de perto embevecido, como se estivesse assistindo um ritual executado por um pagé missioneiro num cerimonial da raça gaudéria... Repetia tantas vezes quantas necessárias para que ficasse com o tempero certo. Para apurar, concluía assando com espeto deitado. Nunca "selou" a carne com chamusqueio que hoje todo mundo relata que faz, porém sempre seu churrasco foi suculento e macio.
Sempre serviu mal passado, como todo churrasco tradicional relatado por SaintHilaire...
Churrasco simples, de gente simples, com carne que geralmente ninguém assa, mas que era motivo de satisfação de toda a família...